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terça-feira, 24 de janeiro de 2012

Vitoria Sobre um Mal


Juntos, eles se livraram do crack

Conheça a história do casal que se desintoxicou junto com a filha, nascida em meio à dependência química

Fernanda Aranda, iG São Paulo | 17/01/2012 09:20
Foto: Carlos Eduardo de Quadros / Fotoarena
Janaina e Gelson usaram crack por 10 anos e tiveram 
dois filhos em meio a dependência

Iasmim acaba de completar o segundo aniversário mas sua história com o crack começa há dez anos, quando Janaína e Gelson, seus pais, se encontram pela primeira vez em uma boca de fumo na região central de Porto Alegre (RS).

Desesperados por uma pedra – e com apenas algumas moedas no bolso – os jovens de 18 anos recém-completos nunca tinham se visto, mas resolveram juntar o escasso dinheiro que tinham para abastecer o cachimbo e "calibrar" o cérebro até o raiar do sol naquele dia de 2001.



Era o início de uma parceria que duraria uma década de pitadas frenéticas e diárias, intercaladas por episódios de violência e também por dois filhos.
Felipe, hoje com 6 anos de idade, e Iasmim – que estica os dedos indicador e médio para mostrar a idade que tem – foram concebidos, gestados e paridos em meio ao uso compulsivo da droga dos pais. Eles representam o novo calcanhar-de-Aquiles dos médicos que tratam a dependência química.
Segundo os especialistas, a epidemia do crack espalhou pelo Brasil inteiro crianças que, ainda na barriga materna, recebem via placenta todas as substâncias químicas que compõem o entorpecente, um "primo pobre” da cocaína.

O tratamento para eles ainda é incerto e os prejuízos pouco conhecidos”, afirma o psiquiatra da Associação Brasileira do Estudo de Álcool e Drogas, Sérgio de Paula Ramos.

Estes bebês já nascem com sinais de abstinência. Não dormem, não têm fome, são irritados, transpiram muito”, completa Fábio Barbirato – psiquiatra da Associação Brasileira de Psiquiatra, especializado em filhos de dependentes e que atua com recém-nascidos do Rio de Janeiro.

A longo prazo, não sabemos os efeitos nestas crianças, mas é certo que o acompanhamento minucioso para amenizar os danos – com medicações e terapia – precisa ser feito por no mínimo cinco anos. Algo que hoje é utópico dentro de um contexto de uso de crack.”

Regra e exceção

O mesmo pessimismo de Barbirato ao traçar o acompanhamento ideal para as mães e filhos do crack está nas casas de parto que recebem estas crianças. Na maternidade de São Paulo Leonor Mendes de Barros – referência para gestantes de alto risco da região central (que engloba o perímetro chamado Cracolândia) – as grávidas usuárias de crack muitas vezes nem se dão conta que entram em trabalho de parto. Elas trazem ao mundo prematuros com complicações cardíacas e neurológicas sérias e, não raro, desaparecem horas depois de parir – deixando para trás seus bebês ainda na incubadora – conta a chefe da Assistência Social da unidade, Regina Dias de Barros.

Ocorrências como essa aumentaram de forma avassaladora no Leonor. Há quatro anos, um bebê nascido no hospital foi afastado da mãe devido a dependência química. Esse número subiu para 15 registros em 2008, 30 em 2009 e 43 em 2010. Somente no ano passado, foram 52 casos. A mesma realidade é atestada na maternidade do Hospital Universitário do Paraná – 7 casos em 2008 e 61 em 2010.

Iasmim, ao nascer em Porto Alegre pesando pouco menos de um quilo, irritadiça e sem força para chorar, não fugiu à regra do quadro clínico das crianças desenvolvidas em úteros dependentes químicos. Mas foi a saúde frágil da menina – "beirando a morte", nas palavras das enfermeiras – que despertou em Janaína a vontade de virar exceção. Ela, que fumou mais de dez pedras de crack algumas horas antes de chegar à maternidade, conta que não quis mais conviver com o perigo letal da droga.

"Decidi que faria tratamento e voltaria para buscar minha caçula não importasse o tempo que passasse. Peguei Iasmim no colo e procurei algum sinal de nascença nela que eu pudesse reconhecer meses e meses depois. Precisava de alguma marca para reconhecê-la”, lembra.

“O Gelson também já queria se tratar e a menina tocou o coração dele. Por conta própria, buscamos uma clínica dois dias depois do parto.”

Foram embora com aquela manchinha no joelho esquerdo de Iasmim na memória. Era o início da família Venâncio sem drogas. Não só isso: eles também viraram referência no protocolo de acolhimento dos núcleos familiares que são devastados pelo crack, atendidos na Fundação de Proteção Especial (FPE) do RS.

Camburão, não ambulância

Gelson foi bom aluno. Adorava Português e História, mas tinha desempenho ainda melhor no futebol. Gremista "roxo", aos 15 anos, ele se preparava para vestir a camisa de titular do time da cidade. Porém, as roupas de marca e as correntes de ouro que estranhamente enfeitavam seus vizinhos chamaram mais atenção do que o uniforme esportivo.

Quis saber como meus colegas conseguiam dinheiro e descobri que eles vendiam droga. Passei a vender e a usar crack. Abandonei todos os meus sonhos. Nunca mais bati uma bola”, lembra.

No mesmo bairro, Janaína – fanática pelo Inter – acreditou que aquela pedra branca e barata poderia fazer companhia nas noites solitárias em que a mãe passava fora de casa, jogando bingo.

Tinha 16 anos. Duas pitadas depois, estava viciada.”

Gelson e Janaína então se conheceram na boca de fumo e, na mesma noite, decidiram morar juntos. Não por amor à primeira vista, dizem, mas pela facilidade de acumular, em dupla, trocados para comprar a droga.

Embaixo da ponte, atrás do lixão, na calçada. Estes foram os endereços do casal, apesar de ambos terem casa.

Minha família desistiu, com razão, de mim. Uma vez por semana me dava um prato de comida, passado pelas grades do portão”, lembra Gelson.

Janaína diz que “esqueceu o que era sentimento”. Tanto, que após a primeira gravidez, decidiu imediatamente entregar o menino para a mãe de Gelson.

Com vergonha, eu digo: o crack falou mais alto do que a vontade de ser mãe.”

O repasse da tutela para outros integrantes da família – tios e avós – é o destino mais comum dos recém-nascidos de viciados em crack que chegam à FPE.

Foto: Carlos Eduardo de Quadros / Fotoarena    A família Venâncio se recuperou e ajudou as assistentes sociais a criar uma   nova estratégia de tratamento




As gestantes, em geral, vão para a maternidade de viatura policial e não de ambulância. Não querem mais contato com os filhos e a reinserção familiar é quase sempre feita por meio de um parente próximo ou elas são encaminhadas à adoção”, conta a chefe da assistencial social da FPE, Maria do Carmo Fay.

Há dois anos, quando a Iasmim chegou até nós, pensamos que ela, como tantas outras crianças, iria repetir o mesmo enredo. Mas, na maternidade, as enfermeiras nos contaram que a mãe tinha prometido buscar tratamento por causa da filha. Resolvemos então fazer uma abordagem diferente. Uma recuperação simultânea que, sempre que possível, gostaríamos de implantar com outras famílias.”

V de Vitória

Ainda com dores do parto natural de Iasmim, Janaína foi para uma comunidade terapêutica evangélica. Os primeiros três meses foram só para se desintoxicar do crack. Gelson conseguiu vaga na unidade masculina na mesma instituição e viu o relógio andar em câmera lenta nestes mesmos 90 dias iniciais de internação.

Sem a pedra na cabeça, descobri que amava minha mulher e queria minha família de volta. Chorava toda vez que lembrava do Felipe. Quando o garoto me encontrava na rua, eu estava sujo e maltrapilho. Ele gritava ‘papai’ e esticava os bracinhos. Eu simplesmente o ignorava porque queria fumar mais uma pedra.

Neste primeiro trimestre de tratamento, as assistentes sociais Maria do Carmo e Isabel Cristina Dias, descobriram onde Gelson e Janaína estavam internados e criaram uma estratégia de ação: assim que os médicos liberassem, iriam levar Iasmim - que estava em um abrigo - ao encontro dos pais e tentar fazer uma recuperação simultânea da família.

“Acreditamos que a criança seria beneficiada se recebesse carinhos materno e paterno. E os pais também seriam estimulados à continuidade do tratamento se tivessem contato com a menina.”

Nove meses depois, com as devidas autorizações, Iasmim foi levada à clínica, ao encontro de Gelson e Janaína. A mancha do joelho foi prontamente reconhecida pelo casal.

Os dois ficaram mais um tempo internados. No entanto, semanalmente recebiam a visita de Iasmim, que no colo das assistentes sociais, deixava o abrigo provisório para “cuidar dos pais”. De imediato, a menina não reconhecia a mãe e não queria ficar em seu colo. "Mas a Janaína teve uma postura exemplar. Olhava para a criança, insistia nos chamegos, trocava a fralda, dava banho. No terceiro encontro, Iasmim já sorria quando olhava para a mãe", conta Isabel.

Após um ano e dois meses internados, Gelson e Janaína tiveram alta e conseguiram alugar uma casa de dois cômodos em São Leopoldo, região metropolitana de Porto Alegre, graças ao bico de “faz tudo” que os pastores ajudaram ele a conseguir. "A religião nos salvou. Hoje sou voluntário e ajudo outros dependentes químicos no projeto Café Convívio da Igreja", diz Gelson.

Foto: Carlos Eduardo de Quadros / Fotoarena
Depois de um ano e meio de tratamento, 
a família Venâncio está completa e sem o crack
Com supervisão judicial, Iasmim foi voltando para os pais, em visitas monitoradas pelas assistentes Isabel e Maria do Carmo. Há quatro meses, a pequena foi autorizada a morar em definitivo com eles. Mensalmente, a família toda passa pelo médico e até com psicólogos. "Foi um modelo que deu certo, mas nem sempre é possível colocá-lo em prática. Mas a ideia é: sempre que recebermos uma criança no abrigo que os pais tiverem em recuperação, promover estes encontros supervisionados", diz Maria Do Carmo que, mensalemente na FPE, recebe entre 10 e 12 "filhos do crack".
Felipe também deixou a casa da avó paterna e, feliz da vida, mostra seu quarto montado pelo pai. Aprendeu a torcer para o Grêmio e, quem sabe, um dia será jogador de futebol "ou lixeiro,
talvez bombeiro", pontua o menino.

Foi Janaína quem ensinou Iasmim a indicar com os dedos a própria idade. Tudo para fazer bonito na festa do segundo aniversário.

Além do número dois, também pode ser o V de vitória, né? A minha, do Gelson, do Felipe e da Iasmim, a nova família Venâncio”, comemora ela, aos 29 anos, e livre do crack.

Fonte: iG Saúde

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Encontro com a Recuperação

 Dor de pai
 

Em um único dia, Fábio tentou o suicídio quatro vezes; passou por quatro hospitais psiquiátricos e um centro de recuperação; virou de pernas para o ar o ambiente familiar e perdeu anos na escola; encontrou Deus, recuperou-se e voltou a ser o filho carinhoso que sempre fora.

Como acontece com a grande maioria das famílias, as drogas entraram na casa do oftalmologista Luiz Ossamu Sanda pela porta dos fundos, de modo insidioso. Quando ele e Dona Mirtes perceberam, o filho Fábio, então com 18 anos, já era vítima do crack. Maus tarde, conversando com o rapaz, souberam que, na verdade, as drogas devastavam a personalidade e o organismo de Fábio há pelo menos cinco anos, época em que fumava maconha. Droga ponte, como muitos especialistas dizem ser, a maconha levou Fábio a outras drogas e ele mergulhou no crack com o mesmo senso de aventura. Só que o crack, destruidor e capaz de levar à dependência quase que imediatamente, foi o inferno para Fábio. "Durante alguns meses eu e minha esposa suspeitávamos que alguma coisa estivesse errada com ele", relembra Sanda. Foram pequenos sinais que, no conjunto, diziam o que assolava o rapaz.

Os objetos encontrados pela casa ilustravam um pouco do drama. Piteiras e cachimbos de crack, por exemplo. Os sinais físicos também. Emagrecimento e unhas amarelas. Logo, o caráter de Fábio, sua personalidade, seu estilo de vida foram moldados pela droga. "Não conhecíamos nada sobre drogas e não sabíamos que aqueles indícios indicavam seu uso", assegura o médico. A constatação veio de forma inconteste. Dona Mirtes flagrou Fábio usando crack dentro de casa. Não havia mais como negar. E a atitude que norteou o comportamento da família foi exemplar. Em vez de ficar procurando falhas da educação, em vez de ficar lamuriando a vida e a sorte, fatos muito comuns em qualquer família que descobre um drogadependente em seu meio, Sanda deixou qualquer tipo de recriminação de lado e se voltou para o que realmente interessava: a recuperação de seu filho.

O Calvário das Internações

Esse voltar-se para o agente central do problema foi imediato. Fábio foi flagrado usando a droga no dia 08 de outubro de 1995. No dia 09, Sanda e Dona Mirtes já procuravam se informar quais os locais onde Fábio poderia ser ajudado. No dia 15 estava internado. "Eu tenho sido um pai bastante enérgico; uma vez que tomamos conhecimento do fato, disse ao Fábio que tinha duas opções: ou se tratar num hospital psiquiátrico ou em comunidade terapêutica; ele disse que preferia um local fechado, só que nem ele e nem nós sabíamos o que era um hospital psiquiátrico", diz Sanda. A descoberta de como funciona um hospital psiquiátrico que procura lidar com a drogadependentes foi dramática. Sua primeira internação, em 15 de outubro de 1995, foi no Hospital Psiquiátrico da Água Funda, em São Paulo. E aí começou o calvário. Os hospitais psiquiátricos públicos estão desaparelhados para tratar drogadependentes. Isso ficou patente quando Fábio foi colocado no mesmo pavilhão dos doentes mentais, psicóticos, esquizofrênicos e outros pacientes portadores de severas patologias psiquiátricas. "Não existe um pavilhão específico para drogadependentes", afirma o médico. Deslocado, sem a assistência necessária, confuso, tratado da mesma forma que os demais pacientes psiquiátricos, Fábio resistiu uma semana. Fugiu e voltou para casa. No dia seguinte, estava itnernado novamente, em outra clínica psiquiátrica particular. "Dessa vez, buscamos a assessoria de um psiquiatra que se dizia especialista em drogadependência e que ficou assessorando um processo de internação", explica o médico. Ambiente fechado, vigilância constante. Mesmo assim, depois de 20 dias, Fábio conseguiu fugir. E voltou para casa.

Encontro com a Recuperação

A história se repetiu. A terceira internação se deu novamente numa clínica particular, mas desta vez Sanda procurou se precaver. Contratou os serviços de um segurança que vigiava Fábio 24 horas por dia. A essa altura, o desequilíbrio emocional que abalava os alicerces da família atingiu os pilares financeiros também. Para manter Fábio distante das drogas, internando-o nessa clínica com guarda, Sanda gastava 400 reais por dia. "Em menos de 20 dias eu tinha gastado com ele a quantia de 10 mil dólares", observa. Vinte dias foi o período preconizado pela instituição para a desintoxicação. Ao fim desse período, ele teve alta médica e voltou para casa. Acompanhava-o o gurada que o vigiara na clínica, destacado para a residência da família a fim de continuar a vigilância sobre Fábio. Entretanto, ele teve uma seríssima crise de abstinência que desencantou a família no que tange aos tratamentos prescritos por clínicas psiquiátricas. Mesmo assim, uma quarta tentativa com hospital psiquiátrico foi feita. Fábio foi internado no Hospital Psiquiátrico Teixeira Lima, de Sorocaba, São Paulo. Mais tarde, Sanda viu que acertou a cidade, não a instituição. No Teixeira Lima, Fábio ficou internado 5 dias. E nesses cinco dias, fugiu duas vezes. Foi o fim. Para hospital psiquiátrico, Fábio não voltaria mais. "A partir dessa fuga, procuramos nos orientar com pessoas que conheciam o regime de comunidades terapêuticas e fomos instruídos a procurar o Esquadrão Vida de Sorocaba", afiança o médico. O dia 25 de novembro é um marco na vida da família de Sanda. No período entre outubro e novembro, Fábio passara por quatro internações psiquiátricas, fugira diversas vezes e tivera uma crise de abstinência muito séria. Naquele 25 de novembro foi internado no Esquadrão Vida, de onde só sairia... para a vida.
 
A Perda dos Valores

Uma olhada no passado da família e um trauma vivido por Fábio pode dizer um pouco do porquê incursionou o mundo das drogas e dele quase não consegue sair. Em 1988, acompanhava a irmã menor num passeio e, ao tentar atravessar a rua, viu, impotente, a irmã ser atropelada e morrer. O trauma instalou-se de tal modo na vida de Fábio que pode ter originado um sentimento de culpa e autopunição que encontrou seu modo de expressar nas drogas. Pode ter sido isso. Além do potencial genético herdado e dos fatores ambientais e comportamentais, a dependência química pode ter origem num trauma. Surtos psiquiátricos acontecem diante de traumas, e a dependência química, categorizada como doença psiquiátrica, pode se manifestar dessa forma. "Nós nuca o culpamos pelo fato; mas acredito que ele nunca se perdoou por não ter podido fazer nada", acredita Sanda.

De amigo, companheiro, carinhoso, de fácil relacionamento, prestativo e de aparência suave e bonita, Fábio passou a ser uma pessoa distante, apática, irritadiça, egocêntrica, de aparência desalinhada e hábitos desregrados. O crack lhe consumia as energias, o orgulho e a moralidade. Droga amoral, como rotulam vários especialistas (ver "Uma carreira cheia de pedras", nesta edição), o crack promove em sua vítima uma reconceituação de valores e relativiza certo e errado, bom e mau. Fábio não chegou a roubar na rua, mas transformava em droga tudo o que podia. "Tênis e roupas não paravam no corpo dle", lembra Sanda. A agressividade, uma característica que nunca habitou o acervo comportamental do garoto, passou a ser presente. "Ele chegava a dar cabeçadas em objetos e paredes quando ficava contrariado". De formação espiritual evangélica, Sanda acredita que maus espíritos atacavam Fábio e impediam sua recuperação.

Três Tentativas de Suicídio

Mas o que mais impressionam na história de Fábio são os episódios de tentativa de suicídio. Durante um período em que ficou internado em uma das instituições buscou dar cabo da própria vida pelo menos três vezes, no mesmo dia. Numa das tentativas de pôr fim ao inferno que lhe consumia a alma, Fábio pulou o muro de sua casa e saiu correndo por uma avenida movimentada, no contra-fluxo, no intuito de ser atropelado. Foi salvo por uma alma caridosa que viu seu estado de absoluto desespero e o retirou da rua. De outra feita, se atirou do telhado de casa. Por mais que a ciência médica admita que tentativas de suicídio em quadros de drogadependência sejam presumíveis, buscar a morte por quatro vezes no mesmo dia indica um grau de sofrimento inatingível por quem nunca passou por isso. Para fugir da realidade mentirosa das drogas, Fábio admitia deixar tudo: família, amigos, ambições.

Doente como Fábio, a família de Sanda procurava meios de se adequar à nova triste realidade. Essa adequação contemplava juntamente com a busca de soluções, uma melhor compreensão do problema. "passamos por tudo", lembra Sanda. "Tivemos medo, revolta, insegurança; no princípio, o clima ficou pesado; mas depois percebemos que tínhamos que amar o Fábio, independente do estado em que ele se encontrava, porque o maior medo do drogadependente é o de que, uma vez descoberta sua dependência, a família passe a não mais amá-lo". Sanda teve problemas com o comportamento de um dos filhos que não administrava muito bem o problema do irmão. Os especialistas afirmam que isso é até natural, pois os irmãos vêem que apesar de fazer tudo direitinho, a atenção especial dos pais recai sobre o dependente; o que não entendem é que ele está numa fase especial, triste, mas especial e merece uma atenção maior.

A Efetiva Restauração 

Naquele 25 de novembro, quando Fábio deu entrada no Esquadrão Vida, começou a recuperar a sua vida a prestações. E a fatura foi liquidade depois de 17 meses. Nesse período, ele atravessou todos os percalços vividos pelo dependente químico confinado. Tentou manipular a família para sair, mas tanto Sanda como D. Mirtes mantiveram-se firmes, certos de que saída antecipada seria precipitada e precipitante do retorno aos tristes dias de dependência de outrora. Na comunidade, ele pôde recuperar o sentido de Deus e manifestou viva confraternização espiritual. Reaprendeu os valores desprezados, a valorização da espera, a disciplina, a gratificação de encontrar prazer em coisas que antes só tinham sentido quando a droga agia. Aprendeu a olhar para si mesmo e se valorizar, recuperando algo há muito perdido na fumaça emanada do crack: a auto-estima.


Sanda se alegra quando diz que Fábio, desde que saiu da comunidade (em 1997), nunca mais voltou a usar drogas. De um grupo de seis garotos que saíram da comunidade com ele, apenas Fábio e mais outro recuperante não voltaram para as drogas. "Ele voltou a estudar e está num estágio que eu considero fase final de restauração; de 0 a 10, tendo zero como escala inicial de recuperação, eu diria que ele está no grau 7". O médico defende a mesma certeza estabelecida por vários profissionais da área: fora do ambiente comunitário é que começa verdadeiramente a luta contra as drogas. "Tirar a droga da vida das pessoas não é difícil", diz Sanda. "O complicado é trabalhar o caráter que pode estar ainda povoado por mentiras, manipulações, rejeições e culpas". A família, nesse caso, também tratada, precisa dar o suporte emocional necessário, a fim de que as drogas sejam definitivamente banidas da vida de todos. José Antonio Mariano

Faltam Formação e Informação

Formado em 1970, pela Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, o Dr. Ossamu Luis Sanda sofreu na pele a dor da discriminação por ter um filho dependente químico. "Você se abre com o seu melhor amigo sobre isso; ele o ampara, apóia, volta para casa e diz ao filho que está proibido de sair com o filho do Luis", exemplifica. "O pior é que ele está certo; não pode expor o filho", acredita. Para ele, muita coisa está errada no tratamento dispensado tanto ao dependente como à família. Os pais sentem-se imensamente culpados, buscam no passado fontes de eventuais erros na educação e coisas do tipo. Quando procuram ajuda, não raras vezes, encontram alguém que vai forçar essa culpa, com tiradas do tipo "também, do jeito que você criou, só podia dar nisso mesmo!".
Os pais precisam de um apoio efetivo e constante. "Eu digo sempre que quando internamos um dependente químico, o ideal seria que internássemos também a família, porque ela está tão doente quanto". Sanda acredita na informação pois, para ele, os pais estão muito mal informados, apesar da abundância de materiais que cotidianamente despencam sobre eles. "Eu mesmo não entendia muito, mesmo sendo médico; e fui obrigado a estudar".
Sanda fala dos pares. Ele acha que a medicina atual está despreparada para lidar com o tema e saca um percentual para confirmar isso. "Apenas 5% dos psiquiatras e psicólogos brasileiros conhecem, de fato, dependência química". O que falta, então? "Constituição de curso universitário como existe no Chile, na Argentina, Venezuela, Colômbia, por exemplo".

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

DERRUBANDO MASCARAS



Conheça histórias de quem viu a morte de perto na Cracolândia, mas hoje está no caminho da recuperação

Diário de São Paulo  - Fabio Pagotto

Eu me vi no espelho e vi um monstro

Claudinei F., de 47 anos,  ex-despachante, hoje auxiliar de limpeza, conheceu as drogas em casa. Seus pais consumiam maconha, cocaína, álcool e crack na frente dele e dos oito irmãos. “O meu pai sempre usou. Quando perdeu o emprego, passou a traficar e cometer crimes como assaltos e furtos. Foi preso várias vezes. Por tristeza, a minha mãe começou a usar também”, fala, com a voz embargada.

Sob a condição de anonimato, ele falou ao DIÁRIO no CAPs AD (Centro de Atenção Pssicosocial de Álcool e Drogas) da Capela do Socorro, na Zona Sul, onde desde de julho de 2011  busca tratamento para se livrar da dependência de cocaína.

Partilha

A primeira substância ilícita que experimentou foi a maconha, aos 12 anos. “Eu comecei a fumar porque na minha família era normal. Depois, eu passsei para cocaína, LSD, chá de cogumelo, qualquer coisa. Só não injetei nas veias”, falou Claudinei. O ex-despachante abandonou os estudos na sexta série e fez diversos bicos. Ele traficava drogas esporadicamente e cometia assaltos “quando precisava arrumar alguma coisa para usar”.

Mesmo assim, tornou-se despachante e chegou a ter dois escritórios, que acabou perdendo por causa do vício em drogas. Claudinei diz ter conhecido o crack em 1990. “Eu experimentei e caí de cabeça. Usei até 1993 e essa droga acabou com a minha vida, quase virei mendigo na Cracolândia”, falou o ex-despachante.


“Na época cheguei a abrir um escritório na esquina da Avenida Duque de Caxias com a Rua Guaianases, em plena Cracolândia, apenas para ficar mais perto da droga”, diz. Apesar de ter parado com o crack, ele continuou sendo usuário pesado de cocaína e álcool.

Claudinei viu as drogas devastarem sua família. O primeiro a morrer foi o pai, em 1992, de câncer relacionado com o abuso de substâncias tóxicas. A mãe morreu cinco anos mais tarde, de cirrose. Um irmão morreu assassinado em uma briga. Outra irmã, que viveu na Cracolândia, morreu de Aids. Ali, um outro irmão seu é usuário de crack. “A última vez que o vi foi no Natal. Ele veio em casa, passou dois dias e voltou à Cracolândia”, falou Claudinei.

Em 2001, cansado de sofrer, buscou ajuda no programa de combate às drogas de uma universidade de medicina na Zona Sul “Eu me olhei no espelho e vi um monstro”, conta. Porém, em 11 anos, pouco avançou no tratamento por não ter acompanhamento adequado. “Eu não parei de usar. Não tinha acompanhamento, o psiquiatra às vezes demorava 60 dias para me receber e nesse intervalo eu acabava usando”, disse  Claudinei.

Acolhida

“Eu senti uma diferença muito grande aqui no CAPs. É mais acolhedor e o tratamento é mais próximo”, relata Claudinei, que se considera recuperado, apesar de ter usado cocaína uma vez há três meses, no que no CAPs é tratado como lapso. “Eu estou trabalhando e bem. Antes, eu não via futuro nenhum para mim”, falou.


Crise com os pais levou ao vício e depois tráfico de droga

D. Washington, 21 anos, achava que seus pais não gostavam dele. “Por quê você não cheira pó? vai se sentir mais suave”, disse um amigo, na ocasião. “Eu experimentei e me apaixonei pela droga. Me sentia bem, dono do mundo. Passei a cheirar todo final de semana e depois todo dia”, falou Washington.

Ele passou a faltar no trabalho, exausto, depois de dois dias sem dormir quando usava a droga. Por causa disso, em menos de um ano, perdeu o emprego em uma fábrica de móveis. “Aí, eu passei a trabalhar na ‘biqueira’ (ponto de venda de drogas), arrumei um revólver e roubei carros e motos. Sempre cheirando cada vez mais cocaína”, falou.

A serviço do tráfico, Washington  transportava e droga, abastecendo diversos pontos, incluindo a Cracolândia. Ele relata que teve muita sorte por não ter sido preso. “Uma vez na favela passei cinco horas em um telhado, quando a polícia estourou a boca de fumo”, falou. Sem fome por causa do efeito da cocaína, recorria à maconha.  “Eu só não usei crack porque traficante não respeita nóia”, afirmou Washington.

Os pais de Washington souberam por meio de vizinhos que o filho estava envolvido com o tráfico e o levaram a um psiquiatra, que o encaminhou ao CAPs, em julho de 2010. Ele começou o tratamento ali, mas sem convicção. “Continuava usando escondido. Não me achava dependente”, diz.

Entrega

A mudança de pensamento aconteceu no aniversário do ano passado, em setembro, ocasião em que ganhou de um amigo 40 gramas de cocaína. “No segundo dia cheirando feito louco eu tive uma overdose e achei que ia morrer. Vi o filme da minha vida passando diante dos olhos e tudo e acordei no hospital. Mudei meu pensamento”, falou Washington, que hoje em dia leva o tratamento a sério e não teve mais recaídas.





Fonte: UNIAD